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Em 2018, Alexsandro Gonçalves chegou ao Hospital Martagão Gesteira. Ele tinha Leucemia Promielocítica Aguda (LPA), uma doença grave e rara que, em muitos casos, provoca sangramentos, levando ao óbito. Ele foi o primeiro paciente do hospital e a primeira criança da Bahia a ser tratada com ácido arsênico. Desde então, o hospital já tratou mais nove pacientes (dez no total), sem o uso da quimioterapia convencional. Nenhum deles, no entanto, foi a óbito. A taxa de mortalidade indutória (a taxa de mortalidade nos primeiros 30 dias de tratamento) que, antes do tratamento com o arsênico era de 35%, foi zerada.
Sete dos dez pacientes já terminaram o tratamento. Dois ainda estão no processo e um deles está internado, com covid-19, além da LPA. Todos os pacientes são crianças baianas. A dona de casa Iracema Silva, mãe de Hernandes Coelho, um dos pacientes, conta que, ao descobrir a doença do filho, ficou assustada. “Depois que começou a tomar o arsênico, ele ficou bem, o cabelo não caiu muito. Ele tinha emagrecido, com muita dor de cabeça. Eu fiquei muito assustada, mas hoje eu estou bem porque ele está bem”, diz.
A utilização do ácido arsênico faz parte de um projeto de dimensões continentais. A onco-hematopediatra do Martagão Gesteira Juliana Costa, que está à frente da ação, integra o Consórcio Latinoamericano de Enfermidades Hemato-Oncológicas Pediátricas (Clehop), instância que reúne diferentes países da América Latina, com objetivo principal de criar protocolos de atendimento para pacientes com câncer, levando em conta as especificidades do continente. Ela é a única brasileira a fazer parte do Conselho Executivo do Consórcio.
Muitos dados que se têm sobre pacientes com câncer e seus tratamentos são da Europa e Estados Unidos. O consórcio existe desde 2015 e elegeu duas doenças para serem alvo da ação: a LPA e o Linfoma de Hodgkin.
Juliana Costa é uma das duas médicas que controlam o protocolo de atendimento aplicado à LPA no Brasil. Os dados obtidos com os tratamentos das dez crianças no Martagão fazem parte de um estudo que está sendo feito pela oncopediatra e que abrangerá o uso do arsênico em pacientes de países como Chile e Argentina, além de outros estados do Brasil, como São Paulo. Ele deverá ser publicado em 2021, em uma revista especializada.
Sangramento – “As crianças que chegavam com LPA tinham, em muitos casos, o quadro agravado com a quimioterapia. Ela mata as células do câncer e as células saudáveis do organismo. Com o tratamento com ácido arsênico, passa-se a atuar no erro genético que está causando o câncer e evita que se fomente sangramentos nos pacientes, a principal causa da alta mortalidade. Trata-se de uma terapia alvo, o que tende a ser o futuro dos tratamentos”, ressalta Juliana.
No entanto, ainda não se pode afirmar que eles estão curados. A absoluta maioria deles está bem, sem apresentar sintomas, sem ter queda de cabelo, náuseas. Não desenvolveram, também, um estágio grave da doença. Para se afirmar que eles estão curados, é preciso aguardar um período de cinco anos, apesar de se saber que, após dois anos, é muito difícil a LPA recidivar.
O tratamento com ácido arsênico é feito em concomitância com o ácido trans-retinoico (Atra). Eles foram descobertos pela medicina chinesa e passaram a ser utilizados. Na década de 70, começou-se a usar o Atra na Europa. Na década de 90, começaram a aparecer os primeiros trabalhos com arsênico. A maioria deles com seu uso em pacientes recidivados.
Hoje, o arsênico já vem sendo utilizado em todos os grandes centros oncológicos mundiais, como primeira linha de tratamento deste tipo de leucemia. Desde 2018, o Martagão passou a utilizar também como guia terapêutico para tratamentos oncológicos de LPA.
Resumidamente, o tratamento é feito inicialmente em 30 dias. O paciente tem alta, em seguida, e entra em remissão. É feita uma coleta da medula, a fim de se constatar que não há mais presença da doença. O próximo estágio é chamado de consolidação, quando eles são submetidos a mais quatro ciclos de arsênico.
Apesar do alto custo, foi verificado que o investimento é menor do que o aplicado em longos tratamentos de quimioterapia. O medicamento é caro e o Martagão conseguiu, por meio de uma parceria com a associação Marchadores pela Vida, uma iniciativa de um grupo de criadores e com o apoio da ABCCMM – Associação Brasileira dos Criadores do Cavalo Mangalarga Marchador.
“Em junho de 2017, tornou-se uma Associação, composta por criadores da raça Magalarga Marchador que se preocupam com o bem-estar do próximo e buscam, por meio desse trabalho, levar esperança a pessoas que enfrentam tantos desafios. A associação tem como principal objetivo a arrecadação de fundos para ajudar instituições filantrópicas que trabalham para atender pessoas de baixa renda como portadores de câncer e dependentes químicos”, ressalta a associação em seu site.
O orçamento do Martagão para 2020 tem um déficit estimado em R$ 6 milhões. Este déficit só consegue ser superado por meio de ações de mobilização social, doações, captações de recurso. Dos pacientes do Hospital, cerca de 50% são oriundos de famílias cuja renda é igual ou inferior a um salário mínimo.
A doença – O Câncer é a doença que mais mata crianças no Brasil. Estima-se em 12 mil os novos casos de câncer pediátrico por ano em nosso país. Dentre as neoplasias infantis, a mais comum é a leucemia, responsável por quase 30% de todos os tipos de cânceres infantis.
As leucemias são doenças agressivas que, se não tratadas corretamente, levam o paciente ao óbito em meses. Elas podem ser classificadas em Linfóides e Mielóides. Entre as mielóides, encontramos a Leucemia Promielocítica Aguda (LPA), leucemia dos promieloblastos, decorrente da translocação entre os cromossomos 15 e 17 t(15;17).
Os tratamentos quimioterápicos antileucêmicos, em uso desde a década de 60, visam à morte celular. Com isto, geram inúmeras consequências ao paciente, porque além de matar as células cancerígenas, atingem também as células normais do organismo, trazendo complicações como: queda de cabelo, redução da imunidade e toxicidades renal, hepática e da medula óssea.
“Na LPA, essas complicações são ainda maiores, porque os promielobastos possuem grânulos intracelulares que se rompem no momento da destruição celular, liberando substâncias fibrinolíticas na corrente sanguínea. Esta liberação leva a um quadro drástico de hemorragia, e a consequente alta letalidade dessa leucemia”, finaliza a oncopediatra.